segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Querida Tia Chiquinha



          Na verdade, Vó Chiquinha era minha tia. Destas que todos chamam de avó, pela dedicação, carinho, sabedoria, colo e ombros sempre prontos a acalmar. Amada por todos, era repouso, como as águas mansas dos rios, e foi bem em frente de um que ela construiu a sua casa.
          Tivera infância dura do interior, que moldou a mulher franzina, mas valente, cheia de forças na vontade de viver.
          Os filhos vieram cedo, logo após o casamento, carregados no colo, enquanto lidava com os afazeres das barracas de festas do marido, nas cidadezinhas e lugarejos da região.
          Muitas vezes a vi, sob o frio intenso, dormindo debaixo do balcão das barracas, até a noite passar e recomeçar a festança, para repetir a mesma rotina do dia anterior. Alguns dias depois, voltava para casa no mesmo caminhão, trazendo consigo os filhos, e o cansaço daquela dura vida. Mesmo assim, jamais lhe escapou aquele seu sorriso curto, mas de fazer alagar, como nas enchentes, os rios dos corações de todos.
          Era só começar as férias e lá ia eu na velha maria-fumaça, através das montanhas de Minas Gerais. Era lá o seu cantinho, seu mundo, o seu pedacinho de paraíso, onde ela era as águas das sombras das árvores.
          Ficava fascinado pelo seu jeito de contar histórias, que faziam com que nossos olhares brilhassem, acompanhando aquelas suas narrativas.
          Tia Chiquinha, Vó Chiquinha, era tudo e muito mais. Certa vez, acordei assombrado em sua casa, com ruídos do lado de fora no quintal.

 “Fique tranquilo, é o Bichinho”, disse ela.

            Como iria ficar tranqüilo sabendo haver um “Bichinho” do lado de fora da casa? Talvez prestes a entrar por debaixo da porta ou através dela, e levar as almas de todos nós. Confesso que adormeci de medo naquela madrugada, até que novamente surgisse o sol. Só ai ela explicou que o tal “Bichinho” era um seresteiro, pretendente de Tiana, empregada da casa, que costumava amanhecer nas ruas, nas suas serenatas. O certo é que ela não se casou com ele, segundo dizem; talvez pelo mesmo fato de cantar feito assombração.
          Quisesse encontrar Tia Chiquinha, bastava achegar-se ao fogão à lenha da casa. Era ali que sempre ficava,, fazendo suas receitas e seu insuperável bolo de fubá; dividindo a atenção com o café que passava sobre a velha pedra cinza de ardósia.
          Ah, aquele seu bolo de fubá! Num instante estava pronto, e a criançada rodeava a mesa, ansiosos por espalhar migalhas e farelos por todos os lados. Mas não antes que ela cortasse, da beirada da forma, as partes mais queimadas, meus pedaços favoritos, que ela sempre guardava.
          Teve a infelicidade de ver a morte do marido e três dos seus filhos. Talvez o destino assim tivesse escrito, por ser a mais forte de todos. Mas o fato é que, o sofrimento gerado colocou na sua face o que o frio dos invernos ao relento, e os anos vividos não haviam colocado. Logo a saúde foi-se diluindo, até que perdesse parte da visão e reconhecesse todos quase que apenas pela voz.
          A idade adulta e a rotina de trabalho me tiraram o tempo do seu convívio, mas sempre que podia estava de volta na casa da beira do rio, como fizera toda a minha vida.
          Um dia, senti aqui no peito que o tempo era escasso e era chegada à hora de vê-la; não mais para comer aquele delicioso bolo queimado, mas para dizê-la, como todas as palavras do meu reconhecimento e agradecimento, por tudo que ela havia dedicado a mim.
          Como sempre, a encontrei à beira do fogão e disse-lhe que havia feito mais que uma tia faria, ou uma avó deveria fazer. Acolheu-me e dividiu comigo o mesmo amor e carinho, que dedicara toda sua vida à seus próprios filhos.
          Depois de um longo abraço, saí dali com um nó na garganta, olhos turvados, e a certeza de que fora a última vez, retornando ao Rio de Janeiro para a rotina e as lidas da vida. Dois meses depois chegara a notícia da sua partida. Decidi não fazer esta última viagem, pois a minha gratidão e adeus já havia lhe dado ainda em vida...



domingo, 27 de maio de 2012

Ver para Crer



Caso real dá conta de que um humilde pedreiro fora contratado para a construção de um muro, em uma das ruas mais movimentadas da sua cidade.

No dia combinado, começou a sua empreitada, derrubando o antigo murro que ali houvera sido erguido anos passados; causando algum transtorno aos que passavam pelo local. De início, poucos acreditavam que das mãos daquele ancião pudesse sair algo que surpreendesse. Seria apenas mais um muro, entre tantos outros da mesma rua.

Retirado todo o entulho, o velho empreiteiro começou a sua arte, e bastaram apenas alguns dias para que alguns parassem para olhar, notando, já naquele início, um toque de mestre.

Mais alguns dias adiante, já se fazia ouvir as palavras de estímulo:

_ “Ta ficando bom heim!” Dizia a maioria.

Entre todos, apenas uma velha senhora, que carregava um livro debaixo do braço, jamais parou. Limitando-se a olhar sem tecer qualquer comentário que fosse.

Quase ao final, os carros diminuíam a velocidade, a fim de contemplar melhor o esmero do trabalho realizado, causando acúmulo, no já intenso trânsito daquela rua. Todos repetiam as mesmas palavras:

_ “Parabéns pelo belo trabalho!”

No prazo combinado da entrega do serviço, tinha o mestre feito muitos amigos e clientes por toda parte, e só naquele último dia, a senhora com o livro debaixo do braço parou para cumprimentá-lo:

_ “Quero lhe dar os parabéns pelo belo trabalho realizado e aproveitar para lhe falar deste livro, que contém a verdade sobre tudo que o senhor precisa saber e acreditar.”

O velho mestre olhou bem fundo nos seus olhos e respondeu:

_ “Quando iniciei o meu trabalho, ou mesmo no meio do caminho, a senhora jamais me cumprimentou, e me nega agora o mesmo tempo que precisou”.

Por maior que seja uma verdade, não se colhe antes de plantar e há de se cuidar, enquanto ainda floresce.



segunda-feira, 21 de maio de 2012

Das Vantagens de Ser Prático



Certa ocasião, um homem de bom senso questionou um poeta a razão pela qual ele não fazia algo de mais prático; argumentando que a sua escrita acabaria por levá-lo a morrer de fome.



_ “O que fazia da vida, aquele seu saudoso primo?” Perguntou o poeta.

_ “Era pára-quedista”. Respondeu.

_ “E como veio a morrer?” Insistiu o poeta.

_ “Praticando”, finalizou.

O homem de bom senso retirou-se sem mais nada dizer.

domingo, 6 de maio de 2012

Magia de Sentir




Naquele corpo,
Outro dia envolvido em abraços,
Sopravam novos caminhos.

O perfume de outrora já não existia mais;
Era agora a mais pura das essências,
A magia de sentir.

Quando ela o tocou no braço,
Havia algo incompreendido,
Um êxtase que lhe fez borbulhar,
E misturar todo e qualquer sentido.

Não foi apenas um simples toque,
Era o sopro dos mais fortes sentimentos,
Como pétalas que soltam das rosas,
E perfumam ao sabor do vento.

Mesmo assim,
Precisava ir além, tentar,
Continuar caminho acima,
Perder o medo de não mais poder parar.

Ela mergulhou os dedos entre os pelos do seu braço,
Como pássaro, que se lança no inverno, em vôo baixo rio acima,
Só para provar o sabor do toque da intensa neblina.

E ele respondeu com o calor dos arrepios,
Deixou-se ser lançado naquele mesmo rio.

Já agora,
Duas mentes insanas, ardentes em corpos rosados,
Seres completamente descompensados,
Diante da mais incontrolável das turbulências;
Que sentem, vertem, convertem;
Deságuam em enchentes.

De tirar o calço e molhar as pontas dos pés,
Desfazer os nós dos laços,
Tecer a teia no horizonte desconhecido,,
Ardente, como o fogo que aquece o próprio sol.

Leu nos olhos dela, o mais forte dos desejos,
Como invasor atenuado dos sentidos,
Que vai além do insinuado,
Do que lhe teria sido permitido.

Tal pena fina rubra,
Quase sangrando a folha branca, naquele, apenas seu, suave jeito.

Ela descobriu nos caminhos do seu braço,
Que não há poços profundos, nem segredos, que um poeta não alcance com as pontas dos seus dedos.





terça-feira, 27 de março de 2012

Aquele cálice ainda vazio, transbordando de vinho.



Podia não ter me envolvido,

Ignorado a sua beleza,

Não ter notado as nuances do seu corpo,

Nos movimentos da sua dança.


Podia não ter ouvido as suas palavras de sedução,

Manter trancado este lado esquerdo do peito,

E recusar, quando ela carinhosamente me estendeu a sua mão.


Podia simplesmente ter seguido em frente sem olhar pra trás,

Não ter ousado colocar sentido,

Naquele seu vestido transparente.


Podia não ter me dado conta daquele seu jeito cativo;

Quase um murmúrio de gemido chamando por mim.


Ah, eu podia!

Mas quando ela derramou em seu corpo, aquele cálice ainda vazio,

Insinuando estar transbordando de vinho;

Confesso que me embriaguei de turvar a visão,


Bebi das gotas de todas as partes,

E estas minhas mãos deslizaram, e sopraram no seu corpo,

Como brisa de inspiração,

Que antecede a criação de toda obra de arte.

sábado, 17 de março de 2012

Este tal de Encanto

Quem nunca se encantou?
Isto lhe parece não fazer qualquer sentido?
Afirmo-te: morrestes antes mesmo teres nascido.

Encanto pela vida,
Pelas conquistas.
Até mesmo nas oportunidades perdidas,
Há ai grande sabedoria,
De quem viveu experiências,
Não apenas por um dia.

Encanto é oásis de águas que tu bebes,
E por mais que contradiga,
É estar vivo na vida.

Encanto pelo visto,
E também pelo desconhecido,
Encanto é sentir, chegar sem precisar ir.

Quando o encanto é maior,
Desses que não pode ser controlado,
Pega a tua espada e o cavalo,
E traga pra teu lado a tua amada.

Nunca se encante pelo todo,
Vá bem devagarzinho,
Delicie-se com as partes,
Como pintor que traça cada linha,
Para compor o esplendor da sua obra arte.

Acaso alguém lhe disser,
Que o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta,
Ignora os caminhos do corpo de uma mulher.

Se partes dos pés,
E vais em linha reta, direto ao pescoço,
É como pressa, que lhe faz engolir a manga com caroço.

Um encanto não somado a outro é pouco, quase nada,
É tomar chá sem biscoitos, ou mesmo sem torradas.

Ah, esse tal de encanto, constantemente desmitificado,
Por aqueles que não diferenciam um redondo de um quadrado,
Pelos céticos, que se dizem realistas,
Os mesmos que lêm um Best Seller,
Como se desfolhassem as novidades de uma revista.

Encanto sem asas cuidam àqueles que envolvem no peito armadura de couraça.
É coração vencido, de caminho restrito,
Onde até mesmo este está sempre perdido.

Encanto pela menina,
Pelas formas,
Pelo jeito de andar,
De ainda poder, em qualquer idade,
Viver esse dom maior de amar.

Encanto é isso, e tudo mais.
É deslumbrar-se pelo presente,
Com os momentos do passado,
Sem precisar voltar atrás,
É esse caminho sem rumo,
Que nos conduz a todos os tempos,
E nos assegura um futuro pra lembrar.

Encanto por tudo que houver,
Por onde ela anda e pisa,
Um novo encanto todo dia,
Que faz de todos nós poetas,
E encantamos na poesia.

Ah, esse tal de encanto!

sexta-feira, 16 de março de 2012

Um Mestre e seus últimos Discípulos

Conta-se que em tempos passados, estudiosos da filosofia caminhavam junto com aquele que consideravam o mestre maior, o mais sábio de todos. Deixaram todos os afazeres e saíram em uma longa jornada, a fim de descobrir, aprender e viver todas as experiências dos caminhos da vida.



Seu destino final era o mais alto pico da região, onde pretendiam construir um mosteiro, um local de reflexão, ensinamentos e meditação.




Na primeira noite, acamparam na beira de um rio, colhendo frutas da mata para se alimentarem.Veio a segunda noite e encontraram pelo caminho um humilde sítio, onde pediram pousada. O chefe da casa os abrigou no celeiro, mas nada tinha para lhes dar, pois viviam em extrema pobreza, sem a certeza do alimento do dia seguinte.




Dali partiram logo com o clarear do dia, e nada foi dito durante aquela caminhada. Pairava no ar uma grande tristeza em todos pelo desconforto daquela família, e a míngua na qual estavam condenados e fadados a viver.




Na segunda noite, encontraram outro velho sítio, mas desta vez, além da pousada foi- lhes dado algo para comer.Vivia ali um grupo de quatro pessoas e nada mais faziam do que plantar o necessário e tirar vinte litros de leite diários de uma velha vaquinha, os quais vendiam na região, para a compra daquilo que não podiam produzir. Aquela vaquinha era a única e derradeira fonte de renda daquela família, e nada indicava que isso deveria mudar.




Quando veio o amanhecer, o mestre reuniu os seus discípulos e os ordenou que pegassem aquela vaquinha e a entregassem ao dono do sítio da note anterior, para que lhe servisse de alimento, ao menos por algum tempo deveria ser o bastante para o difícil sustento.




Saíram dali, sem que o dono tomasse conhecimento e fizeram o que lhes tinha sido ordenado. Contudo, de volta ao caminho abandonaram o mestre e deixaram que este seguisse sozinho. Não encontraram qualquer justificativa, para aquele que lhes dera pousada e alimento fosse tratado de forma tão injusta.



O mestre seguiu sozinho e se instalou naquele pico mais alto, construindo sozinho a sua moradia. Seu último destino da jornada e objetivo pretendido.




Dois anos se passaram e os discípulos se reuniram novamente. Decidiram que fariam o mesmo caminho e visitariam aqueles sítios, por onde haviam passado.
Grande foi o espanto ao verem no primeiro a grande mudança. Com a vaca que aquele homem recebeu das suas mãos, trocou por dezenas de galinhas poedeiras, e em pouco tempo se tornou o maior fornecedor de ovos de toda a região. O sítio agora ostentava fartura por todos os lados e progredia a cada dia.




Saíram dali felizes e pegaram o caminho que conduzia àquela segunda pousada.
Novamente, constataram grandes mudanças. Aquela família não tendo mais a vaquinha cuidou de conseguir outras formas de sustento, e todos saíram para procurar alternativas de sobrevivência. Com a força do trabalho de todos, logo progrediram. Do velho sítio, construíram uma rica e farta fazenda.




Na noite seguinte os mesmos discípulos se reuniram para avaliar todo o ocorrido, e só ai entenderam a sabedoria daquele que um dia fora deles o grande Mestre. Contudo, mais sábio ainda fora o dono do primeiro sítio, que não havia comido a sua "galinha dos ovos de ouro".

Voltaram aos seus afazeres, pois perceberam que jamais chegariam a Mestres...

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sobreviveu à própria Morte




Um dia, não muito distante daqui, em tempo ainda não muito remoto, viveu um poeta com uma história ímpar, intrigante e inconfundível. Como todos os poetas, encontrara afinal a sua Musa. Assim a chamou, manteve e preservou; sem jamais tê-la dividido, partilhado, com quem quer que fosse, ou mesmo compartilhado algum momento da sua vida.



Fez dela seu mundo e o cercou de muralhas gigantescas, só concebíveis nas fortalezas dos castelos medievais; ingenuamente acreditando que qualquer ameaça fizesse caminho pelo lado de fora daquele universo, aonde imaginava apenas ele poderia penetrar. Seus motivos eram insuperáveis; as diferenças profundas, que colocavam entre ambos um abismo, onde o outro era apenas a sombra de uma imagem feminina distorcida, inalcançável e obscura, do lado oposto e devasso da visão.


A mulher que descrevia em seus textos era outra; tão outra, que precisava mantê-la protegida do próprio e inominável reflexo. Torná-la real, aproximá-la, trazê-la para seu convívio, corromperia e macularia toda a sua obra literária; mancharia a realidade da própria ficção, seus princípios, e a verdade dos seus ideais defendidos.


Assim, a manteve afastada de si mesma e imune, até que um dia teve notícia de que aquela outra se perdera na desonra de vulgaridades, e se entregara às indignidades, iniquidades e desvarios da sua mente e índole irremediavelmente pervertidas, e se jogara do abismo.
Foi um duro golpe, o mais forte já sentido, que pela primeira vez lhe fez dobrar os joelhos, em angústias desmedidas. Contudo, ergueu-se; entendera o inevitável do anunciado desfecho previsível, e não vendo alternativas, a "enterrou" ainda viva.

Não permitiria, porém, que a sua Musa tivesse o mesmo destino e também sucumbisse. Havia sobrevivido com ela o caráter, honestidade, a verdade, princípios inquestionáveis de nobreza; mesmo que tivessem sido, e fossem agora apenas parte e a única meia face naquela sua ficção.


Eis que então, o poeta novamente levantou a cabeça e mesmo na dor das suas lágrimas sorriu. Orgulhou-se do Amor que plantou, não colheu, mas sentiu; o mais puro e verdadeiro sentimento jamais concebido. Maior do que o infinito do céu que flutuava sobre a sua cabeça; seu único motivo presente visível de inspiração. Alegrou-se com o mundo, que ele mesmo havia criado, traçado pelas linhas da escrita. Naquele mesmo céu, agora só seu, a estrela mais brilhante havia sobrepujado a própria morte; eternizada sublimemente, vivendo na sua arte, aquela virtuosa outra parte, para sempre em suas poesias.


Fez-se exceção às leis conhecidas e aos princípios da própria vida.

sábado, 21 de janeiro de 2012

"Pô cara... legal!"


Remilson tinha fama de ser um dos professores mais exigentes daquele colégio na Pavuna, nos arredores da cidade do Rio de Janeiro. E talvez o “Re” do seu nome não fosse por acaso, pois queria fazer sempre melhor.

Ai de quem cometesse um só erro de ortografia, sintaxe, concordância, ou até mesmo uma vírgula esquecida, em uma das suas redações. Era perfeccionista, meticuloso ao extremo. O máximo era mínimo, quando se tratava de exigir de si mesmo.

Com este perfil, sempre lhe fora difícil conseguir alguém que lhe aturasse, um par para dividir aquela sua filosofia e mania de perfeição..., até encontrar, em um vagão de trem do metrô da Pavuna, aquela que imaginou ser a mulher há tanto tempo esperada.

Ela estava lá no “empurra, empurra” da multidão, e quase não teve tempo de observá-la em maiores detalhes, a não ser por carregar no pescoço uma corrente com a letra “R”, apoiada entre os seios.

Passou toda noite imaginando qual seria o seu nome. Talvez Rose, Rita, Raynara; quem sabe quantos outros mais...

Queria a todo custo vê-la novamente e tentar um início de diálogo, sem nenhum deslize; de forma tal que causasse uma boa impressão.

Passou toda a semana seguinte na frente do espelho, ensaiando o seu discurso; até decidir por recitar-lhe um poema; no seu melhor estilo e jeito de dizer.

Preparou-se com todo o esmero, e não poderia ser diferente. Quem sabe fosse também uma professora exigente, talvez doutorada. Cuidou de evitar qualquer tipo de engano, um mínimo erro que fosse.

Enfim, a sua grande oportunidade havia chegado naquele fim de tarde, com o mesmo vagão de trem quase vazio. Era o momento certo para a sua tão esperada aproximação:

-“Senhora?”

- “Sei que não me conheces, contudo, permita-me recitar um poema em sua homenagem”.

A mulher ficou sem saber o que dizer, e Remilson viu aí um sinal de permissão, prosseguindo de forma eloquente, como jamais houvera feito antes.

Ao final, todo aquele vagão silenciou por alguns segundos. Remilson ali parado, esperando ouvir dela as suas primeiras sábias e doces palavras.

Com se tivesse retornado de um susto, pausadamente ela articulou os lábios e finalmente fez-se ouvir a sua voz:

- “Pô cara... legal!”

*Texto Ralacionado

domingo, 8 de janeiro de 2012

O Homem que inventou o Buraco



“Dedão” era um sujeito misterioso. Um dia apareceu naquela região e construiu um pequeno casebre, com ripas de caixotes, em um dos maiores terrenos baldios da localidade; fazendo dali a sua morada.

Contam os mais velhos que teria cavado uma caverna logo abaixo, só saindo nos dias mais quentes do verão. Em pouco tempo, virou motivo de comentários e assunto preferido no ainda pequeno povoado.

­De onde vinha? Quem seria afinal aquela assustadora figura? Era o que todos queriam saber.

Sabe-se lá o porquê, jamais cortava as unhas dos pés, e isso lhe gerou aquele conhecido apelido.
Era o terror das crianças. Qualquer que fosse suas travessuras; os pais logo acudiam:

- “Vou chamar o “Dedão!”

Funcionava melhor do que surra de vara verde, ou algum castigo mais severo, comum naqueles tempos remotos.

Alguns diziam que já fora rico, outros que teria sido abandonado pela família, e por desgosto, começou a mendigar. Mas a maioria não tinha dúvidas de que se tratava de um louco. Ainda mais quando ele apareceu carregando em uma das mãos um enorme buraco, que ele mesmo havia construído.

Pronto, foi a gota d’água!

Todos agora afirmavam que o velho “Dedão” havia inventado o buraco.

Um intrigante artefato de madeira, com um buraco ao meio, uma tampa com alça e outra para carregá-lo. Mas carregá-lo pra que?

Havia quem dissesse que era ali que ele teria colocado todo o seu passado, para que nunca tivesse que lembrar. Diziam que todo e qualquer problema colocava no buraco e, de alguma forma, se via livre deles. O fato é que, mesmo assustador, jamais causou problema a quem quer que fosse, enquanto ali ficou.

“Dedão” morreu alguns anos depois, e por ironia do destino foi enterrado em outro buraco, no cemitério mais próximo.

Fico aqui pensando se “Dedão” era de fato “louco” como todos afirmavam, ou tratava-se de um pacificador. Talvez “loucos” sejamos todos nós por só nos darmos conta do “buraco”, quando estamos próximos de nos juntar a ele.

Hoje, no então terreno baldio, onde havia a caverna de “Dedão”; foi construído o imponente prédio de cinco andares da Prefeitura, da agora cidade de São João de Meriti.

Caso ainda fosse vivo; “Dedão”, em toda a sua sabedoria; com certeza diria:

“O lugar é o mesmo; só aumentou o tamanho do buraco”.

"Existe diferença entre a loucura de um sábio e a sabedoria de um louco?"

*Texto Ralacionado.

sábado, 7 de janeiro de 2012

A Musa de um Poeta


Tantas e tantas vezes procurei a razão destes meus delírios;
Deste inevitável encanto eterno,
Que teima em me aprisionar.

Das deusas de formas sedutoras,
Não encontrei em ti nenhuma comparação;
Nem mesmo no teu leve sorriso, ou neste inconfundível jeito de andar.

Dos traços do teu rosto,
Mesmo perfeitos,
Eram perfeitos, como muitos,
Por tantos outros desejados.

Tanta magia, talvez estivesse no falar,
Mas dizias as mesmas palavras,
Que tantas outras,
A tantos outros fizeram sonhar.

Fui além,
Busquei o inexplicável nos caminhos do teu espírito,
Mas de lá eu retornei com as mãos quase vazias;
Com nada, que já não fosse conhecido.

Ainda assim,
Nestes meus delírios és verdadeiramente única;
Permaneces, entre todas, a mais completa;
És simplesmente, e irremediavelmente para sempre a Musa de um Poeta.

Texto Relacionado.