quinta-feira, 23 de junho de 2011

Vinte Anos Depois


A vida não tinha sido nada fácil. Cresceu assim, dividindo as dificuldades com os outros filhos da casa, mas tinha em mente mudar tudo isso, tão logo fosse dona do próprio nariz.

A adolescência chegou desenhando traços e formas perfeitas na face e no corpo daquela menina, e não tardou a chamar a atenção dos mais moços da vizinhança. Ela conhecia o seu poder de sedução e sabia muito bem como usá-lo. A cor morena, olhos insinuantes faziam de todos presas fácies entre aqueles seus pequenos dedos suaves e delicados. Quem sabe conseguisse um namorado de posses, que lhe fizesse virar as costas para as dificuldades que haviam marcado toda a sua vida, fruto da pobreza e um pai nem sempre presente. Pensava em trabalhar, ganhar a vida; rodar o mundo a procura da sua felicidade, onde quer que ela tivesse feito morada.

Casar, ter um lar, filhos, uma família estruturada e condições melhores de viver. Talvez encontrasse, mesmo que pra isso fosse preciso abri mão de um casamento por amor.

Namorados? Teve alguns, mas nem sempre tinham o perfil daqueles seus sonhos, que ela havia moldado para o futuro; até que finalmente entrou na sua vida alguém que parecia representar tudo isso. Não pensou duas vezes! Mesmo não tendo certeza dos sentimentos que os ligavam; casou. Caso não fosse amor, poderia vir com o tempo, com a convivência do dia a dia. Afinal, ele era um homem de caráter, um obstinado pela lida e declarara ter por ela um grande amor.

Nem bem havia passado a adolescência vieram os dois filhos. A maternidade havia lhe marcado profundamente, e por algum tempo acreditou que havia esquecido os sonhos e planos do passado; e, se não era, chegou a sentir pelo marido algo muito parecido com amor. Tentou, fez de tudo pra que isso acontecesse. Já agora com mais de trinta anos, achara que já era chegada à hora de uma rotina sem grandes tempestades; muito menos dilúvios inesperados.

Sete anos adiante, tudo parecia ter voltado. Filhos quase criados e estudando, trançando cada um seu próprio caminho e ela novamente sentiu-se sozinha.

Queria voltar a trabalhar, estudar; retomar aquele pedaço de tempo que não viveu, que não sentiu; ouvir novamente o pulsar das batidas do seu coração, ter mais do que uma vida estável, uma casa pra cuidar. Queria redescobrir o caminho da felicidade deixado no passado, em nome do presente, que ela não desejava que tivesse que viver no seu futuro.

Aos 37 anos ainda conserva a o mesmo corpo insinuante e a mesma face suave daqueles primeiros meses da transformação de menina para mulher. Mais do que isso: os anos e a experiência somaram a ela a capacidade de persuadir, de conseguir tudo aquilo que desejasse, sem que para isso tivesse que relutar num esforço maior.

O trabalho veio logo em seguida, e trouxe com ele um pouco da liberdade do lado de fora dos muros da própria casa e de si mesma. Vieram as novas amizades e com elas acabou descobrindo que ainda era uma mulher desejada e assediada, como caça em terra que não cresce, nem se fortalece qualquer grão.

A aliança no dedo esquerdo lhe parecia um peso difícil de carregar; como gume de faca afiada, pronta para cortar as asas de qualquer sonho de liberdade, em que ousasse se lançar. Mesmo assim, não estava disposta a lutar contra a própria índole, a mesma que sussurrava no seu ouvido, que ainda poderia ser muito feliz.

Aconteceu de o conhecer em um dia, que tudo indicava não a levaria a nada especial, mas nascia ali uma relação que escreveria os capítulos mais importantes do livro da sua vida. Como no casamento, no primeiro momento achou que o sentimento era amor. Havia nas palavras dele uma magia que ela acreditava ter perdido com a adolescência e via agora ressurgir em forma de sonhos. De alguma forma ele a fizera voltar a acreditar, mas não tardou a descobrir que era de fato o mais intenso sentimento de amizade, que jamais sentira por qualquer outra pessoa. Ele, por outro lado a amava como mulher, com aquela mesma intensidade sua, e jurou que jamais em sua vida existiria qualquer outra.

Amizade e amor. Tão próximos no significado, mas seria possível coexistirem pacificamente entre um homem e uma mulher? Nesse caso não foi! Depois de muitos desencontros, de tentativas de entendimento; separaram-se, e tudo indicava que seria definitivamente.

Ela não havia encontrado o amor, e até mesmo a amizade lhe havia sido recusada. Tentou, lhe escreveu inúmeras vezes por uma só palavra, ligou tantas outras, mas nenhuma resposta teria desde então.

O marido bem que notou os seus pensamentos distantes e fez de tudo pra que ela voltasse a ser a mãe dedicada e dona de casa que sempre fora. Bastasse um só pedido seu; fosse qual fosse, e ele estava sempre pronto para fazer acontecer. Mas apesar de tanto esforço isso não lhe trazia amor, tampouco felicidade, que ela queria a qualquer preço conseguir.

Foi inevitável se envolver com outros homens. Teve sim momentos felizes, e ela já começava a acreditar que felicidade se resumisse apenas nisso.

Vinte anos se passaram e o futuro finalmente havia chegado. Na sua bagagem não trouxera consigo nenhuma felicidade, que durasse além de muitos dias.

Dos homens que conheceu sequer lembrava mais os nomes; o jovem das palavras mágicas parecia agora boas lembranças do passado. Mas a aliança no seu dedo não a deixava esquecer, que ainda existia um marido, e que talvez agora só lhe restasse descobrir com ele a felicidade, que sempre parecia lhe escapar por entre os dedos.

Como em tantos outros anos, mais uma primavera chegou e trouxe com ela um reencontro inesperado do passado. Mesmo tantos anos depois se reconheceram pelo olhar e ela sentou-se ao seu lado, num tronco de árvore esquecido na calçada.

Estava ali diante dela aquele homem da magia com as palavras, que um dia lhe jurara amor eterno, lhe fizera voltar a acreditar e sonhar. Entre os dois e o espaço de tempo, muitas experiências vividas, que agora se redescobriam num olhar.

Dalí só saíram juntos, instintivamente de mãos dadas. Vinte anos depois, por amor ele lhe permitiu a amizade e ela pela grande amizade lhe permitira aquele grande amor...

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Eu só queria...


Tudo começou de uma forma inexplicavelmente simples. Desastradamente, esbarrei no ombro dela, nestes caminhos da vida que percorremos por aí. E teria sido mais um desses: “desculpe senhora”; não fosse à visão daqueles seus olhos tom de mel, que pareciam querer mudar de cor, com o toque dos primeiros raios de sol daquela manhã de verão.

Tremi, confesso. Pela primeira vez na minha vida estava diante de uma força maior, que eu, na minha vaidade, julgava ser só minha.
Pela primeira vez faltaram as palavras, e eu não sabia o que dizer. Perdi ali o comando elementar de me mover em qualquer outra direção, que não fosse ao encontro dos olhos dela.

Literalmente eu estava enfeitiçado, e ela parecia saber.

O ônibus veio. As pessoas passavam como vultos, entre aqueles olhares em fogo. Finalmente alguém empurrou me desequilibrando na calçada, e a perdi de vista.

Quase não dormi naquela noite. Só passava pela minha cabeça a possibilidade de ir naquele mesmo local, e vê-la novamente.

Nem bem amanheceu o dia e eu estava lá, no mesmo ponto de ônibus, ao lado da banca de jornal, esperando passar o tempo nas notícias do dia.

- “Lembro do senhor”, disse o jornaleiro.

- Sim, estive aqui ontem, e quase levei uma queda na calçada.

- “Claro, lembro desse fato, e observei os olhares que o senhor trocava com aquela senhora”.

- Acaso a conhece? Perguntei.

- “De vista, mas sinto ser eu a dar-lhe essa notícia: todo dia o marido a deixa aqui de carro, nesse mesmo ponto de ônibus e segue o seu caminho.

- Casada então?

- “Sem dúvida que sim; a aliança no dedo não deixa nenhuma dúvida sobre isso”.

Quase desequilibrei novamente com aquela revelação. Senti vontade de ir embora, mas quando me virei, um carro parou ao lado e ela desceu, como o jornaleiro havia descrito.

Quando ele se foi, impulsivamente eu a segui no meio da multidão. Caminhava em passos largos, como se tivesse pressa para chegar. Duas quadras depois o seu celular tocou, e logo se aproximou um desses rapazes de corpo atlético, bem mais jovem do que ela, e se entrelaçaram nas trocas de beijos e abraços, bem no meio da rua.

Só ali eu me dei conta de que havia me apaixonado por uma mulher de muitos homens.

Podia ter sido mais um caso na vida dela, mas tive a dignidade pra não ser. Podia fingir não saber dos outros, mas sabia que seria incapaz de conviver com essa mentira. Podia esquecê-la, mas jamais consegui.

Quase oito anos se passaram e por nenhuma outra senti a mesma coisa. Foi difícil viver todo esse tempo sabendo onde ela estava, e não poder ir ao seu encontro.

Hoje é dia dos namorados. Lá fora, casais sorridentes trocam presentes, entre beijos e abraços. E eu aqui mesmo sem poder queria. Só queria tê-la comigo, e ela nem ao menos sabe que eu existo...

quarta-feira, 1 de junho de 2011

E dai?


Naquela manhã de sábado, me dirigi à casa de um grande amigo para cumprimentá-lo pela indicação como presidente de um dos maiores partidos políticos da cidade.
- “Parabéns!”, anunciei logo na chegada.
Ele deu um sorriso meio amarelo; pensou, pensou, como se procurasse as palavras para me responder, e disse:
- “Olha, eu não pedi e nem queria esta indicação. Só aceitei porque foram muitos os amigos, que insistiram para que assim o fizesse, com a argumentação de que eu era a única pessoa com unanimidade e credibilidade para ocupar aquele posto.
Aceitei pelos amigos, mas nada disso tem importância, ou faz algum sentido pra mim. Serei presidente de um grande partido, e daí? Talvez pudesse ser indicado para concorrer à prefeitura; talvez ganhasse, e daí?
Qualquer coisa que façamos, onde quer que seja possível chegar, haverá sempre inúmeras outras que podemos fazer nesse caminho da busca pessoal, em função do reconhecimento, da admiração, de honrarias, mas, e daí?

Diz a sabedoria popular que “caixão não tem gaveta”; portanto, que ninguém espere levar nada desta vida para outra; se é que ela existe.
Títulos, medalhas, diplomas, são como confetes: sobem em festa e acabam debaixo dos pés da multidão. Sobrevivem o tempo preciso da própria queda.
Cada um vive no seu mundo com seus próprios sonhos e anseios, no seu micro universo pessoal. O trabalhador da favela sonha em construir um sobrado com terraço. O político de Brasília deseja ter uma mansão à beira do lago Paranoá.
A nível do planeta, existe e já existiu quem sonhasse em ser o dono de toda a Terra. Estes acreditavam ser o limite máximo possível a ser atingido. Um macrocosmo governando milhares de outros micros.
Um dos astronautas em missão na órbita da terra, dizia, que olhando lá de cima, tudo parecia sem importância e insignificante cá embaixo. Declarou que aquela visão havia transformado completamente a sua forma de pensar a vida. Riu da discussão e briga que teve com o vizinho. Questionou as guerras que leu nos livros por disputas territoriais e de poder. Tudo agora lhe parecia sem valor, diante da imensidão do universo a sua volta”.
Concluiu meu amigo:
“A verdadeira busca, o maior motivo de alegria é encontrar felicidade contribuindo para a felicidade de outras pessoas. De fato, ninguém que não seja feliz é capaz de fazer a felicidade alheia, a não ser que encontre na possibilidade do efeito o seu próprio motivo.”
Naquele instante, veio na minha mente o pensamento do historiador inglês Theodore Zeldin, que afirmava o seguinte:
“Conversar não é apenas reembaralhar as cartas: é criar novas cartas para o baralho. O aspecto da prática da conversa que mais me estimula é o fato de poder mudar os sentimentos, as idéias e a maneira como vemos o mundo, além de poder mudar até mesmo o próprio mundo”.
Fico aqui pensando quantas pessoas dedicarão seu tempo à leitura deste texto. Fico aqui imaginando quantas destas poderão dizer: “e daí?”.