segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"Um Elogio aos Idiotas"


Esta semana, um amigo me falava das suas novas experiências de vida. Dizia ele que após ter sofrido um sério acidente, que quase lhe custou à vida; havia mudando completamente.

Que, após ter passado por tantos problemas de saúde, que quase o impossibilitou de caminhar; era agora uma pessoa melhor, melhor filho, melhor esposo, melhor em tudo. Adquiriu novos conhecimentos sôbre meios e recursos de como cuidar da saúde preventivamente, para não ter que recorrer à medicina que cuida da doença, e assim ter uma vida mais longa e saudável.


Conhecimentos tais que lhe possibilitou a oportunidade de ingressar em uma nova vida profissional de sucesso.

Perguntei-lhe então o que lhe dava a certeza de tais mudanças. Foi então que ele me respondeu que esta era “uma pergunta idiota, pois segundo ele, ninguém pode avaliar o sofrimento alheio. Que ninguém pode sentir o que o outro já sentiu. Que as próprias experiências e dores são intransferíveis. Sendo assim, não caberia a minha pergunta, ou qualquer explicação.

Após esta conversa, decidi rever o conceito que eu tinha do vocábulo” idiota”, e fui buscar nos dicionários as definições, que seguem abaixo:


1) idiota adj./s. com. Se aplica a pessoa que está escassa, ou carece de inteligência, que é torpe de entendimento. estúpido, imbécil, tonto.
OBS Frequentemente usado como insulto.

2) adj. e s.m. e s.f. Diz-se de, ou indivíduo estúpido, falta de inteligência, de bom senso.
Diz-se de pessoa retardada, cuja idade mental não passa de três anos.

Sinônimos: burro.
Antônimos: inteligente

Seguindo na minha busca, encontrei um texto que me parece elucidar a questão:

“ Um Elogio aos Idiotas”

Carlos Cardoso Aveline

“Na vida acelerada do mundo de hoje, todos desejam ser espertos, vivos e astuciosos.
Ninguém quer ficar para trás - quando você está indo, os outros já estão voltando. Ninguém mais diz frases com segundas intenções: dizem coisas com terceiras, quartas e quintas intenções. Frases que, com sorte, um leigo no assunto precisa de várias horas para decifrar e talvez dois ou três dias para imaginar uma resposta à altura.
Em compensação, alguém que diz diretamente aquilo que pensa acaba provocando escândalo e mal-estar. É imediatamente catalogado como perigoso e tratado como idiota. A sinceridade parece contrariar as normas da convivência e da boa educação modernas. Assim, as pessoas bem educadas são amáveis, mas nem sempre se deve acreditar no que dizem.
É certo que, quando examinamos a questão da inteligência e da idiotice, surgem algumas perguntas indiscretas. O que é inteligência? O que é burrice? Quantos tipos há de idiotas?
Podemos dizer que inteligência é a capacidade de perceber o real. Como há realidades muito diferentes no mundo, não existe um tipo único de inteligência. Cada situação da vida requer um tipo específico de percepção, e por isso as inteligências são múltiplas. A idiotice e a burrice podem ser definidas como a incapacidade de perceber o real, e são tão variadas quanto às inteligências. Há, portanto, muitos tipos de idiotas. Alguns deles, inclusive, são espertalhões. Sim, há muitos idiotas que passam por inteligentes, e também grande número de pessoas inteligentes que passam por idiotas.


Além disso, quem é inteligente em uma área da vida pode ser burro em outras. Você é esperto em política e burro na hora de jogar futebol. Sua namorada pode ser menos intelectual que você, na hora de discutir filosofia, mas há aspectos da vida em que ela coloca você no chinelo. Há coisas que seus filhos fazem bem melhor que você, como, talvez, compreender as sutilezas de um videogame ou computador. Felizmente, ter sabedoria não é saber tudo. Ter sabedoria é saber o mais importante - e administrar bem os seus talentos.

Conheço seres humanos que têm tanto medo de parecer burros que aplaudem - ou pelo menos fingem que compreendem - esse tipo de raciocínio longo, difícil, sem significado algum. Mas tal constrangimento é desnecessário: deixando de lado o medo de parecer idiotas, perderemos menos tempo fingindo e seremos mais felizes.

Os sábios, como os idiotas, são íntegros. Eles não fingem que são inteligentes e não têm medo de errar. Tentam, erram e conhecem o sabor da derrota. Mas, quando acertam, são geniais. O idiota de hoje pode ser o sábio de amanhã, graças à experiência adquirida. Em compensação, aquele que não possui ânimo para tentar não tem chance alguma de aprender.
Por isso devemos criar uma cultura em que é permitido a cada um cair e levantar livremente. Porque somos todos apenas aprendizes. Erramos e aprendemos o tempo todo, e devemos estimular em cada ser humano a coragem de buscar - mesmo tropeçando - os seus sonhos mais elevados. Banindo da nossa cultura o medo ao ridículo, cada um se permitirá um pouco mais de deselegância e autenticidade em sua maneira de viver.
O exemplo de Albert Einstein, um dos maiores gênios da ciência moderna, é ilustrativo. No início da vida, ele recusou-se a falar até os três anos de idade. Seus pais - pessoas sensatas - pensavam que fosse retardado mental. Mais tarde, quando Einstein ingressou na escola, ele foi novamente considerado imbecil”.


Ter algum conhecimento específico não faz de ninguém inteligente, assim como não o ter faz de alguém um idiota. Creio que meu amigo confunde conhecimento com sabedoria. O primeiro ele já tem, resta-lhe ainda adquirir o segundo.

sábado, 4 de setembro de 2010

Todinho


Todinho era uma criança especial. Especial em todos os sentidos. Sempre muito calado, cabeça baixa e de pouca conversa, mas parecia ter o carinho de todos. Quando ele chegava com sua bermuda na altura dos joelhos, a garotada logo se apressava para escolher os jogadores de cada time.
Valmir sempre decidia tudo, e não era pra menos, como craque da rua e do bairro. Suas pernas tortas desorientavam os marcadores, que ficavam sem saber em qual direção ele ia partir com a bola.

O certo era que, time que Valmir jogava, Todinho ficava do outro lado. Diziam os garotos que se não se podia ter quem fizesse os gols, ao menos teriam quem os evitasse.
Com a bola nos pés Todinho não sabia o que fazer. Até que tentou, mas nunca consegui grande coisa. Era uma presa fácil para os jogadores dos outros times. Mas quando o colocaram no gol, como última opção; virou a pedra no sapato de Valmir, e seus dias de artilheiro pareciam ter chegado ao fim.
Todinho simplesmente segurava tudo com uma facilidade que impressionava a todos.

Certa vez perguntei aos outros meninos a razão do seu apelido. Diziam que era devido a sua semelhança física com um menino da propaganda do achocolatado de marca bem conhecida, naquela ocasião.

Como Todinho não ligou; o apelido pegou.

Tinha lá pelos seus 12 anos de idade e nunca lhe vi acompanhado de nenhum outro amigo, o que seria normal nos garotos nesta idade. Estava sempre sozinho, e talvez tivesse escolhido agarrar no gol pra não ter mesmo que falar com mais ninguém.

O fato é que aquele menino voava como um pássaro. Valmir já tinha virado motivo de chacotas e piadas no grupo por não conseguir marcar gols nas traves de Todinho.

Um dia, Valmir decidiu que isso iria mudar. Quando entrou em campo naquele dia, estava sério e parecia ter uma idéia fixa na cabeça. Olhava pra Todinho de lado, como se lhe enviasse algum recado.

Não deu outra!

Mal começou o jogo, Valmir pegou a bola e saiu driblando todo mundo. Com suas pernas tortas ninguém sabia pra que lado marcar. Se fossem pra esquerda, Valmir saia pela direita, e se ficassem, era bola pelo meio das pernas na certa. Não tinha quem lhe fizesse parar. Ele corria com toques sobre a bola que ia rolando a sua frente, como se fosse cúmplice dele. Até que finalmente ficou cara a cara com o gol defendido por Todinho.

Parou ali na certeza da facilidade e do êxito do seu chute. Eram apenas quatro metros e não tinha como errar. Todinho estava lá parado no centro do gol impassível sem mexer um só dedo sequer, mas seus olhos...

Nunca tinha visto coisa igual. Os olhos verdes de Todinho estavam fixados nos olhos de Valmir, como se esperasse sair dali a direção que a bola finalmente tomaria.

Valmir deu um sorriso debochado, ameaçou chutar num canto, deu uma paradinha no meio do caminho e chutou no outro. Quando a bola partiu, Todinho, do outro lado partiu na mesma direção da bola. Tinha endereço certo no canto esquerdo da trave, e tudo indicava que Todinho chegaria atrasado sem que nada pudesse fazer.

Como um pássaro em vôo diagonal livre; Todinho foi ao encontro da bola. Pernas estiradas, braços esticados, dedos apontados firmemente na direção do canto. Foram segundos que duraram uma eternidade.

Quando ele caiu ao chão, fez-se um enorme silêncio. Valmir já comemorava com os braços levantados pra torcida, mas Todinho rolou várias vezes sobre o próprio corpo e por pura mágica levantou do outro lado com a bola entre seus braços, batendo a poeira do seu corpo.

Jamais esqueci aquele momento. Pegaram ele no colo, jogaram para o alto. Era agora o mascote e o preferido da torcida.

Valmir também me impressionou. Pensei que fosse ficar irado e saísse sem nada dizer. Em vez disso, caminhou na direção de Todinho, o cumprimentou e lhe deu um forte abraço. Daquele dia em diante só jogava se tivesse do seu lado as mãos mágicas daquele menino.

Um dia senti a sua falta nas nossas brincadeiras do futebol e procurei saber o que tinha acontecido. “Ta descansando”, diziam todos. Achei que havia algo mais do que isso, pois ele nunca mais aparecia.

Até que sua mãe, vendo a minha aflição, contou-me o acontecido:

Havia sérias suspeita de que Todinho estava com “Paralisia Infantil”. Caso isso fosse confirmado, jamais tornaria aquele gramado, ou qualquer outro, e provavelmente jamais fosse visto caminhando pelas ruas novamente.

Chorei muito naquele dia, como nunca tinha feito antes. Eu adorava aquele moleque e não podia acreditar que isso estivesse acontecendo com ele.

Uma manhã o vi saindo para o médico amparado por seus pais. Volta e meia dobrava os joelhos, como se lhe faltasse firmeza pra ficar de pé e caminhar. E isso se repetia todos os dias.

Depois de muito insistir, sua mãe me permitiu ir junto com Todinho nas consultas aos especialistas. Quase todos acreditavam tratar-se mesmo de “Paralisia Infantil”, que ia a cada dia lhe tirando o controle e a mobilidade do corpo. Doença sem cura, até então.

Os pais de Todinho deixaram suas vidas de lado para cuidar só do menino. Todo dinheiro era usado na tentativa de salvar-lhe a vida. Algumas vezes ficavam o dia inteiro só com o café da manhã pra não gastar o dinheiro da passagem de volta.

Vendo o entra e sai do menino no hospital todos os dias, um velho médico procurou saber do que se travava, e começou a acompanhar o caso.
Dr. Fabiano Lima e Silva era o mais respeitado médico daquele hospital e tomou Todinho como um desafio seu.

Em umas das consultas posicionou Todinho do lado oposto da mesa, pegou sua caneta de formatura bem ali ao lado e o desafiou a pegá-la:

_ “se conseguir pegar é sua”, disse o velho doutor.

Lembrei na hora da vez em que Todinho agarrou aquela bola de Valmir. Pensei: “Ele vai conseguir; precisa!”

Como daquela vez, Todinho olhou fixo nos olhos do doutor, que havia acabado de desafiá-lo. Com muito esforço, de lhe tirar gemidos sussurrados, conduziu a mão em direção a caneta, mas ela parecia se revoltar e não querer seguir adiante. Franziu a testa, como se fosse pular novamente em vôo livre, como fazia nas partidas de futebol, e num esforço maior a caneta estava lá entre os dedos de uma das suas mãos.

Foi uma alegria geral. Abraços, apertos de mãos. Desta vez, choramos todos juntos, abraçados ao doutor. "Seu filho vai se curar”, antecipou o médico entre risos de alegria.

Enfim, não era a doença imaginada a princípio, e sim uma outra de nome “Coréia”, rara, com as mesmas características, mas não tão grave, até então desconhecida pela maioria dos médicos.

Passados alguns meses, me emocionei ao vê-lo de volta aos campos de futebol, mas agora seu maior troféu era aquela caneta. Sempre que hesitava em fazer alguma coisa era para ela que voltava os olhos, e de alguma forma, tirava de lá a força necessária para vencer todos os seus desafios.

Nunca mais me separei dele, nem ele de mim, e a caneta o seguiu por toda parte; na arte da escrita de um poeta, moldado na experiência da sua própria vida.

Hoje, quando o vejo com olhar perdido, fixo em algum ponto qualquer, tenho certeza de que está tentando antecipar a direção dos seus sonhos.


Carlos Lucchesi, 04/09/2010.